Este é o relato de uma de minhas expedições ferroviárias, numa noite sem lua em Paracambi (RJ), entre os dias 23 a 24 de agosto de 2003.
O COMEÇO
A Serra do Mar não é novidade pra mim. Por diversas vezes já percorri o trecho entre o km 64 em Paracambi, passando por Engenheiro Paulo de Frontin e Mendes até Santana de Barra, em Barra do Piraí. Conheço o interior de cada túnel, exceto o mal-fadado 12 (Me lembro da vez em que o atravessei clandestinamente a bordo de um vagão de carvão. Pensei que iria sufocar com o calor e a fumaceira, mas essa é ooooutra história). No entanto, todas essas caminhadas foram feitas a luz do dia. Fiquei pensando em como seria atravessar o trecho a noite. Há muito eu sonhava em passar a noite no meio do mato, no melhor estilo patrulha da selva. Arrumei coragem e planejei a aventura.
A caminhada já contava com uma grande vantagem. Além de conhecer bem o lugar, não seríam necessários mapa ou bússola, visto que era só andar pelos trilhos rumo ao destino, muito mais fácil do que seguir por trilhas na mata. Não havia a possiblidade de topar com traficantes armados pois não existem favelas ao redor (Pelo menos não por enquanto). Talvez pudessem surgir animais silvestres pelo caminho. Mesmo o trajeto não oferecendo tantos riscos, a travessia seria a noite e com montanhas cobertas de mato por todo o lado. Por isso era prudente me cercar de algumas precauções. Pesquisei na Internet sobre os riscos das caminhadas noturnas e procurei ouvir pessoas que já acamparam a noite. Preparei então um kit básico, levando numa antiga mochila militar os seguintes itens:
1 - Lanterna, alimentada por seis pilhas alcalinas tamanho grande (fundamental!)
2 - Facão de mato
3 - Faca
4 - Gorro de lã
5 - Luvas
6 - Agasalho de lã
7 - Capa de chuva
8 - Frasco com álcool gel
7 - Garrafa d'água (2 litros)
8 - Dois pacotes de batata frita (sal) e barras de cereais (açúcar)
Além disso, carreguei nos bolsos da minha calça e do colete o seguinte:
A - Cartela com pílulas de desinfecção de água
B - Isqueiro
C - Latinha de veneno em pó
D - Rádio AM, FM e Ondas Curtas
E - Máquina fotográfica (digital)
F - Telefone celular
E, é claro, não poderia esquecer do meu boné da RFFSA, sempre presente nas minhas aventuras ferroviárias. Uma amiga veterinária me disse que é sempre bom ingerir complexo B pelo menos uma semana antes de entrar no mato. Segundo ela, a vitamina confere um odor a pele que espanta insetos. Como eu ando tomando umas vitaminas por conta da minha miopia, achei que isso não seria necessário. A caminhada seria por toda a noite, daí passei a dormir de dia.
A CAMINHO DE JAPERI
Na tarde deste sábado, dia 23 de Agosto, acordei lá pelas 5 da tarde. Tomei um café, ajeitei a mochila e, me sentindo o mais equipado dos seres humanos, fui até a estação de São Cristóvão. Embarquei num trem rumo a Japeri mais ou menos as 6 da tarde. A essa hora o trem vinha lotado. Os camelôs, muitos, vendendo seus cacarecos no grito, passavam de um lado a outro apressados. Um senhor sentado a minha frente comia biscoito de polvilho. Os farelos íam caindo pelo peito, sendo cuidadosamente limpos com uma pequena toalha por uma senhora que o acompanhava. Chegando na estação de Engenho de Dentro, o trem parou. Abriu porta, fechou porta. Várias vezes. O maquinista alertou pelo auto-falante da composição de que se tratava de uma avaria. Os passageiros saem dos vagões. Pensei, meu Deus, quanto tempo será que vai levar isso? O trem ameaçou partir. Voltam os passageiros as pressas para o interior das composições. Não tinha lugar nos bancos mas por sorte achei um espaço pra sentar no chão próximo a uma das portas. A viagem que em média dura 1 hora e meia, levou duas horas. Cheguei na estação de Japeri por volta das 8 da noite.
Parei num quiosque que fica dentro da estação. Conheço o pessoal de lá de outras vezes que fui a Serra do Mar. Estava com fome e queria poupar meu estoque de suprimentos para a caminhada propriamente dita. Comi um salgado de frango (eu acho) e um refrigerante. Comentava com o dono do quiosque sobre meus planos. Ele, incrédulo, disse que só faria uma coisa assim se pudesse levar uma escopeta. Sua esposa, no caixa, também incrédula e um tanto apreensiva, parecia me censurar com aquela expressão de alguém que está diante de um desesperado prestes a cometer suicídio. Tanto ele como ela foram unânimes em me tachar de maluco. Eu, sozinho, a noite, andando pelas montanhas. Comecei a refletir sobre a possibilidade deles estarem certos.
Nisso uma voz masculina em tom policialesco surgiu por detrás de mim, perguntando se eu era caçador. Já sei o porque da pergunta, pensei. O cabo do meu facão despontava de dentro da minha mochila. Me virei e ví três figuras de preto. São os novos seguranças da Supervia. Imaginei que teria problemas. Disse a eles de que o facão seria necessário visto a minha eminente aventura eco-ferroviária, mas os guardas, incomodados por eu estar alí com aquela ameaçadora arma branca (Nossa!), me dizíam a todo tempo de que eu poderia ser preso pelos PMs de Japeri. Me convenceram. Afinal, seria um fiasco passar a noite numa delegacia ao invés da Serra do Mar. Peguei um jornal velho e uma fita durex com o dono do quiosque e embrulhei o cabo do facão. Já alimentado, me despedi de todos com uma sensação de que aquela seria a minha última vez. Claro, né? Depois de ouvir a tantas cassandras...
Saí da estação e fui esperar o ônibus que vai até Paracambi. Sabia que nos fins de semana ele demorava uma eternidade, ainda mais a noite. Peguei então uma vã. Precisava saltar próximo aos limites dos dois municípios, num lugar chamado "ponte seca", na altura do km 66 (Seria a versão ferroviária da Rota 66? He!He!He!), por onde passa a linha que vem de Brisamar e Arará. No caminho, olhava para a paisagem. Que paisagem? Não dava pra ver nada. A única luz era do farol da van. Cheguei na ponte seca, paguei ao motorista e o veículo partiu me deixando na escuridão. Tirei a lanterna da mochila e subi por um barranco até a linha do trem. Foi aí que me bateu um medo danado. Uma versão ampliada do medo infantil do escuro, com a diferença de não poder chamar a mamãe e nem acender o abajur. Olhei para os contornos da Serra do Mar. Teria que caminhar por aquelas montanhas negras noite a dentro e isso me assustou. Só que não dava mais pra voltar atrás. Eram 8 e meia da noite, penso eu.
PÉ NA ESTRADA (DE FERRO)
Iluminando o caminho, fui andando pelos dormentes. Ouvía ruídos no mato ao redor. A luz da lanterna revelava bovinos que, em busca de pasto, cruzavam a linha férrea. É comum encontrar ossadas de animais pela ferrovia, atropelados pelos trens que passam a todo momento, dia e noite. Cheguei até uma pequeno abrigo abandonado, com um dormente que servia de assento. Parei alí para algumas providências. Tirei as botas sete-léguas e coloquei dentro delas um pouco de veneno em pó. Enfiei as barras da calça por dentro das meias (duas em cada pé) e passei mais um pouco do inseticida. Calcei novamente as botas e fiz um pequeno lanche. Barra de cereais e água. Pus apenas um dos fones e liguei o rádio. Precisava ter um dos ouvidos livres para perceber os ruídos do ambiente, principalmente a aproximação dos trens. Ser pego de surpresa por um cargueiro não fazia parte dos meus planos. Aliás, isso me faz lembrar que na tarde anterior eu havia sonhado que tinha perdido uma perna, provavelmente num acidente. Junte-se a isso todas aquelas pessoas receiosas quanto ao resultado dessa aventura e temos aí uma pressão psicológica da melhor qualidade.
Levantei acampamento e continuei o passeio, ouvindo um debate pelas ondas médias sobre o atentado a sede da ONU no Iraque e coisa e tal. Andava e falava sozinho ao mesmo tempo, comentando sobre as opiniões dos debatedores. Mas isso não desviava minha atenção das coisas a minha volta. Nos morros próximos era possível ver queimadas, não sei se feitas por fazendeiros ou resultado da falta de chuvas. Vez por outra o vento trazía o calor das fogueiras, em contraste com o clima ameno. Esperava encontrar frio na serra, mas não foi o que aconteceu.
Encontrei a primeira estação do trecho, a antiga Ellison, que insiste em permanecer alí, como que contrariando a ação do tempo e dos homens. Continua lá, de pé, sozinha, guardando memórias em suas paredes de quando servia a inúmeros passageiros. Se levarmos em conta as outras tantas estações caíndo aos pedaços ou demolidas que já ví por aí, Ellison é uma senhora muito bem conservada. Parei para uma foto. Foi bom vê-la de novo. Espero encontrá-la mais vezes. De preferência de pé.
De vez em quando eu desligava o rádio e a lanterna para que o silêncio e a escuridão da noite pudessem me cobrir. Daí então até os sinais de trânsito ferroviários tinham um aspecto diferente. Eram como tótens de olhos verdes e vermelhos velando pela minha caminhada. Uma coisa que me chamou muito atenção foi que, apesar de ter percorrido aquela linha por diversas vezes durante o dia, somente a noite eu notei certas coisas, como por exemplo uma fila de formigas vermelhas carregando folhas e cruzando a linha, velhas plaquetas informando sobre curvas e mesmo uma cruz de madeira fincada no alto de um pequeno barranco próximo aos trilhos. Diga-se de passagem uma descoberta um tanto perturbadora saber que alguém havia morrido exatamente alí naquele lugar deserto. Definitivamente aquela não era uma aventura pra quem tem medo de escuro e assombração. Subi o barranco para fotografar a cruz mais de perto. Não sei quanto tempo ela estava lá.
CHEGANDO EM MARIO BELLO
Próximo a uma curva, encontrei uma das tantas obras ao longo da linha. Passei por perto de uma fogueira e ouvi um "boa noite" vindo de algum lugar. Devolvi o cumprimento e perguntei a figura invisível se havia uma aguinha gelada por lá. Trazia comigo uma garrafa de dois litros, mas é sempre bom beber uma água fresca da serra. Surgiu então o vigia que me levou até uns tonéis e uma mangueira. A água tava mesmo geladinha. Batemos um papo. Ele me parecia meio surpreso em me ver, mas me disse ter encontrado andarilhos na noite anterior. Nisso um cargueiro passa por nós e interrompe nossa conversa com toda aquela barulheira das locomotivas e o ranger dos vagões. Esperei o longo trem passar e segui em frente. Passei pela estação de Mario Bello. Em frente mora uma mulher que conheço de uma aventura ferroviária anterior. Me veio então a lembrança daquele dia, em que resolvi subir a serra sem uma preparação adequada. Os suprimentos que trazia eram em quantidades insuficientes. A sede e a fome não tardaram. Bati palmas em frente ao portão de madeira. De dentro da casa saía uma música evangélica. O cachorro latindo chamou a atenção da mulher que veio me atender. Me apresentei, contei sobre a caminhada e perguntei se poderia me suprir com água e alguma fruta. Aquela alma bondosa fez mais do que isso. Pediu que eu esperasse em seu quintal e em alguns minutos me apareceu com sanduíches de queijo, bananas e uma pequena garrafinha com água. Enquanto eu matava minha fome, ela me contava sobre o recente falecimento de seu pai. Disse ter voado até Brasília para seu enterro e contou também que foi amparada por um pastor. Citando uma passagem bíblica, o religioso aconselhou que seguisse os mesmos passos de seu pai, ajudando a quem batesse a sua porta em busca de auxílio. Portanto, a minha presença alí, coincidência ou não, seria para ela um sinal de que estaria no caminho certo. Bem, profecias bíblicas a parte, eu tenho por aquela mulher um grande carinho e respeito. Pensei em lhe dizer um "alô", mas já passava das 10 da noite, muito tarde para uma visita surpresa.
Avistei a silueta da seccionadora "J" que, como a maioria das construções reminiscentes da eletrificação da Serra do Mar, também está abandonada. Naquela noite estava sendo ocupada por outro vigia. Acenei pra ele e segui meu caminho. Mais adiante dei uma parada para descansar. Não que eu já tivesse andado tanto assim. O problema é que o solado das botas sete-léguas não era espesso o suficiente para impedir que a brita da ferrovia machucasse a sola dos meus pés. Aproveitei para comer metade de um dos pacotes de batata frita, apreciando as luzes da cidade de Paracambi ao longe e ouvindo o noticiário pelo rádio. Faltava um tanto pra chegar a Paulo de Frontin, mas não havia pressa. Tinha todo o tempo do mundo. Nisso, mais um trem de minério subia a montanha rumo a Barra do Piraí. A linha da Serra do Mar deve ser uma das mais movimentadas do Brasil. Não é preciso esperar muito pra ver trem descendo e subindo a serra. E no silêncio da noite, dá pra ouvir os motores diesel a quilômetros de distância. O flash da minha máquina tem alcance muito reduzido, por isso não valia a pena fotografar as locomotivas em movimento. Além do mais, eu procurava ficar fora do alcance visual dos maquinistas. Apesar de nunca ter tido nenhum problema com eles nestes poucos anos fotografando pelos ramais da MRS, sempre havia a possibilidade de topar com um Goreti da vida. Sujeitinho chato! Pouco tempo atrás, no mesmo trecho, o cidadão me criou uma quizumba danada pelo fato de eu estar alí tirando fotos. Chegou mesmo a preparar um relatório a empresa sobre o "incidente". Espero que com seu bravo gesto ele tenha sido promovido a ASPONE. Vida que segue.
A SUB-ESTAÇÃO DE SHEID
Prossegui com a caminhada. Logo depois de Engenheiro Gurgel, encontra-se localizada entre dois túneis, a sub-estação de Sheid, o último grande bastião da eletrificação da Serra do Mar, monumento esquecido da decadência ferroviária brasileira. A construção, do mesmo modelo da sub-estação de Engenheiro Pedreira em Nova Iguaçú, ergue-se imponente bem no meio de lugar nenhum. O acesso não é fácil e só pode ser feito a pé, trem ou helicóptero. Me lembro da impressão que tive quando a ví pela primeira vez a bordo de um trem de carga. A tarde ia caíndo e a luz do sol, amarela, dava um tom quase surrealista aquele prédio. Um ano depois eu estaria em seu interior, fotografando os restos mortais de geradores e outros equipamentos.
Naquela noite lá estava ela mais uma vez diante de mim.
Fui me aproximando. Rezei para que não houvesse nenhum vigia por alí. Queria ficar a sós com aquela dama de concreto. Passava da meia-noite, a escuridão fez com que o prédio tivesse um aspecto lúgubre, quase como um castelo mal-assombrado, com direito ao vento assobiando por entre o capim alto ao meu redor. Precisava avançar com cautela, pois não sabia se a antiga sub-estação estava abrigando cobras ou outros bichos. A sensação de estar alí, sozinho, era única. Um misto de introspecção budista e suspense Hitchcockiano. Subi por uma escada até um nível mais alto. As paredes tinham algumas pichações. O silêncio denso era rompido pelo ruído das minhas botas estalando o entulho espalhado pelo piso de ladrilhos vermelhos. Da janela sem vidros eu avistava a ferrovia. Desci e desliguei a lanterna por um instante. Agora era só eu, a sub-estação de Sheid, e as incontáveis constelações que via pelas tantas janelas. Faltou apenas eu ter trazido uma fita cassete pra ouvir "Hall of Mirrors" do Kraftwerk. Alías, já fiz isso certa vez numa caminhada anterior. Decidi inclusive que a trilha sonora da Serra do Mar seríam as enigmáticas canções eletrônicas daquela banda alemã tecno-pop dos anos 70.
Apesar da beleza incomum daquele momento, o vento que chegava por detrás de mim não me deixava muito confortável. Parecia que algo estava prestes a me atacar pelas costas, sorrateira e fulminantemente. Por via das dúvidas, liguei a lanterna e fui embora. Sabe como é. É bom não menosprezar nossos pressentimentos. Me sentei logo adiante, a beira da ferrovia, bebi um pouco d'água, recostei me no chão da plataforma. No rádio, uma entrevista sobre pirataria. Desliguei mais uma vez a lanterna para apreciar o céu. Fiquei alí, descansando, pensando na vida. Mal comparando, aquilo mais parecia uma versão ferroviária do caminho de Santiago de Compostela. Não tive nenhuma revelação mística, mas o tempo que passei nas montanhas serviu para arrumar diversos pensamentos em minha cabeça. Tempo depois, mais um trem estava a caminho. Me escondi, tentei fotografar. Nada feito, a foto ficou uma porcaria. Peguei minha mochila e continuei a minha peregrinação.
TÚNEIS
Depois de atravessar um túnel em curva, cheguei até a localidade de Palmeira da Serra, já em Paulo de Frontin. Tive a sensação de um explorador perdido na mata sentindo-se salvo por encontrar a civilização. He! He! He! Quanto exageiro, eu sei. O lugar, que durante o dia já não é muito movimentado, estava completamente deserto pela madrugada. Um trem de carga estava estacionado aguardando ordens do CCO para prosseguir. Tirei uma foto, aproveitando a meia-luz dos postes, sob o olhar desconfiado de um sujeito que conversava num boteco. Passei pela estação de Palmeira da Serra. Quanta história tem aquele lugar. Na década de 40 um desmoronamento destruiu o prédio original e morreu foi gente. Nos dias atuais, o lugar ainda é vítima de deslizamentos quando ocorrem chuvas pesadas. Conforme eu caminhava, ia chamando a atenção da cachorrada, que latia freneticamente. Pessoal alí gosta de cachorro, viu. Andei mais um tanto, passei por outro túnel e dei outra parada. Nem sei quantas vezes eu parei ao longo do caminho. Meus pés doíam ainda mais e não havia nada que eu pudesse fazer além de pô-los pra cima de quando em quando. A vegetação era agitada pelo vento forte que soprava a minha frente. Mesmo assim o clima não esfriou. De qualquer forma, eu estava preparado para uma eventual queda de temperatura, com um casaco feito de cobertor de lã que levava em minha mochila, além uma luvas que me foram muito úteis no inverno catarinense e um gorro. Pensei em levar minha touca "ninja", mas imaginei que se eu a tivesse usando e esbarrasse com um vigia armado pelo caminho, babau! Já era o fã ferroviário Carlos Latuff. Melhor não facilitar as coisas para o azar.
E por falar em azar, passar por dentro de túneis requer uma dose de sorte. São vários ao longo do trecho, todos numerados. Uns pequenos e até agradáveis de se atravessar, outros mais longos, escuros e tenebrosos, com as paredes recobertas de fuligem, água minando do teto e até morcego voando. Entre Palmeira da Serra e o centro de Paulo de Frontin, havia um obstáculo. O túnel duplo número 11, com 660 metros de extensão. Certa vez, diante dele, numa tarde de verão em 2002, um ex-funcionário da RFFSA, acompanhado de uma criança que parecia ser sua neta, me alertou para o perigo de se atravessar a pé aquele túnel traiçoeiro. Voce consegue ver a luz no final dele como se o trajeto fosse curto. Mas não é. A possibilidade de encontrar um trem pelo meio do caminho é um risco grande já que, diferente de outros túneis em que a linha dupla passa por dentro de uma mesma galeria, o de número 11 é duplo, ou seja, uma galeria para cada linha. Daí o espaço entre as paredes do túnel e os trilhos é menor. Sendo uma passagem mais estreita, uma vez dentro dela, corre-se o risco de ser atingido pelas laterais do trem em movimento. Nesses casos, é preciso encontrar um recuo na parede de rocha para se abrigar ou então se jogar no chão. Em resumo, um perrengue danado! Eu nunca havia atravessado o túnel 11, mas senti que poderia naquele momento. Um cargueiro tinha acabado de passar e eu fui logo atrás, com o passo apressado. Havia muita fumaça em seu interior e levou um certo tempo até que o vento pudesse arejar as coisas por alí. Me preocupei com a possibilidade de uma intoxicação caso a ventilação não fosse o suficiente. E então, o que vejo? Um porco! Não dava pra ver se selvagem ou doméstico. Por sorte, coitado, estava morto. Sua carcaça esmagada descansava por cima dos dormentes. Não havia sido feito em pedaços como outros animais que já ví. Tinha sido esmagado literalmente, prensado mesmo. Parei pra tirar uma foto, mas com pressa, pois sabia que a qualquer momento outro trem poderia passar. Hoje, enquanto escrevo os detalhes desta façanha, percebo que atravessar túneis na serra envolve outro risco. O de encontrar animais, vivos, em seu interior. Imaginem voces se aquele grande suíno fosse um porco-do-mato e estivesse vivinho alí na minha frente. Provavelmente a essa hora haveria uma cruz de madeira com meu nome por lá.
A CHEGADA
A saída do túnel se aproximava e eu ria a toa. Estava finalmente cruzando o túnel 11, e sem nenhum arranhão. Foi só eu sair de dentro dele, e minutos depois desce voando um trem com vagões-prancha vazios. Sorte, pura sorte. Eram 3:20 da madrugada e eu havia completado a expedição ferroviária. Pensei que demoraria mais, até me imaginei vendo o sol nascer no caminho. Me sentei em frente a uma casa, guardei meu facão e a faca, tirei as barras da calça de dentro das botas, acabei com o que restava dos dois pacotes de batata frita, comi outra barra de cereais, molhei a garganta e sintonizei numa FM. Pausa para o descanso merecido. Na ferrovia a minha frente, algo pulou. Era uma perereca. Ah! E eu que imaginava encontrar animais selvagens na Serra do Mar. O máximo que cheguei perto disso foi uma perereca. Sou um idiota urbano. He! He! He!
Depois de um tempo alí, ouvindo música e esticando as pernas, fui passeando tranquilamente em direção ao centro de Engenheiro Paulo de Frontin, que naquelas horas parecia uma cidade-fantasma. Não tinha nada aberto em lugar algum. Ví uma porta aberta com uma luz ligada. Um homem ajeitava jornais que seríam vendidos pela manhã. Perguntei a ele qual era o horário do próximo ônibus para o Rio de Janeiro. Ele então me disse que teria de esperar até as 5 e meia. Bem, vamos esperar então. Fui até uma pracinha, sentei no banco por um tempo. Depois pulei um portão e entrei na antiga estação para tirar uma foto noturna. Andei mais um pouco e sentei na entrada de uma padaria. O cheiro de pão fresco era animador. Mas acabei mesmo tomando uma média e um pão com manteiga no botequim ao lado que abriu primeiro. A parede do bar tinha uma pintura da estação de trem e uma locomotiva a vapor com o nome "Baroneza" na lateral. Tomar café da manhã num botequim ferroviário. O que mais eu poderia querer?
Eram 5:15 quando me sentei num dos bancos de madeira da pequena rodoviária. Um rapaz me olha com insistência. Não o reconheci sem o capacete. Era o Rafael, um manobrista que trabalha no posto do km 64. Da última vez em que o ví, tirei uma foto e prometi que enviaria pela Internet ou pelo correio. Muito gentil, batemos um papo e contei a ele sobre a minha travessia. Foi mais um a me chamar de maluco. Ele partiu logo depois. Foi pegar no batente. Eu continuei por lá, esperando o tal do ônibus. Um grupo de senhoras se aproximou, perfumadas até demais, cumprimentaram as pessoas que alí estávam e sentaram-se atrás de mim. Já havia passado das 5:30 e nada do meu transporte até o Rio chegar. Tive então de tomar um coletivo até Paracambi e de lá outro até a rodoviária Novo Rio.
Estava em casa as 8 da manhã. Não tão cansado quanto esperava, mas o sono era grande. Sonho realizado, já podia dormir.
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2 comentários:
Fantástico o seu relato!!!
Estou pretendendo fazer a caminhada durante o dia. Na última semana, tentei atingir Paulo de Frontin só que fui frustrado pela chuva ainda em Mario Bello e acabei voltando pela estrada de terra. Seria ótimo poder conferir essas fotos noturnas.
Forte abraço e continue inspirando com seus relatos outros fãs ferroviários como eu.
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