Eram quase 7 da manhã do dia 9 de fevereiro quando despertei no quarto de uma pousada em Paraíba do Sul, interior do Estado do Rio de Janeiro. Cheguei na tarde do dia anterior, e logo na rodoviária percebi o calor que faz naquela cidade. Tanto calor que os hotéis cobram mais caro por quartos com ar condicionado. Estava em Paraíba do Sul para investigar o paradeiro de duas estações, Carlos de Niemeier (km 165,5) e Casal (km 159,2), ambas pertencentes a extinta Estrada de Ferro Central do Brasil, e localizadas na zona rural de Vassouras (RJ). A indicação foi de Ralph Giesbrecht do conhecido site Estações Ferroviárias.
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Na pousada onde passei a noite em Paraíba do Sul, conheci o Sr. Wanderley e sua família, que de carro vieram da cidade paranaense de Paranaguá e seguíam rumo ao Ceará. Para animar a longa viagem, trouxeram dezenas de CDs de música evangélica...
A manhã estava nublada, o clima ameno, havia chovido forte durante a noite. Aos poucos o céu foi se abrindo. Tomei café, peguei a mochila, e segui rumo a praça central da cidade onde peguei um ônibus até Andrade Pinto, cuja estação ferroviária localizada no km 170,2 seria o ponto de partida até Carlos de Niemeier e Casal. O caminho mais fácil aquelas localidades seria de trem mesmo e logo logo eu descobriria o quão sacrificado é o acesso a pé. Chegando ao vilarejo de Andrade Pinto por volta das 8 da manhã, fiz algumas fotos da estação e comecei a caminhada pelos trilhos.
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Aspecto atual da estação Andrade Pinto.
Um homem repousa na plataforma.
Casa de turma próximo a estação, servindo atualmente de residência particular. O dístico com a sigla "EFCB" foi mantido.
Ainda era cedo e o sol já se mostrava vigoroso. A ida foi tranquila, estava bem disposto, e percorri os 4 km até Carlos de Niemeier sem grandes esforços. Deu pra perceber que ao redor da estação, ou melhor, de suas ruínas, havia um povoado. O pouco que restou foi engolido pelo mato. Trata-se de mais um lugarejo que morreu devido a erradicação de linhas regulares de trens de passageiros.
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O pouco que restou de Carlos de Niemeier e das construções ao seu redor...
...está encoberto pelo matagal, incluíndo a placa que trazía o nome da estação.
O mato alto dificulta o acesso as ruínas.
A caixa d'água (esquerda) é datada de 24 de agosto de 1966.
Continuei a caminhada. Ao longo da linha, haviam vagões de vários tipos, encostados nos desvios, deixados lá para apodrecer, e muitas ossadas de animais atropelados pelos trens cargueiros que passam velozes por alí. O calor foi aumentando, o sol já batia forte em minhas costas. Passava das 11 horas quando cheguei a Casal. O mesmo cenário de Carlos de Niemeier, só que por detrás do matagal, havíam ruínas mais interessantes de se ver. Descansei um pouco e por volta do meio-dia, fui fazer imagens do lugar. Pra chegar as ruínas, tive de vencer o mato alto cheio de folhas cortantes, galhos com espinhos e me esgueirar por debaixo de arame farpado.
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A plataforma da estação Casal, e uma caixa d'água com a sigla "EFCB", datada de de 08 de maio de 1958.
Ruínas ao redor da plataforma.
Entre os restos daquela cidadela, me surpreendi com uma capelinha abandonada, erguida em 20 de maio de 1956.
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Em seu interior, repleto de teias de aranha e fezes de boi, sobraram duas estatuetas e o altar, onde permanecem apenas tijolos.
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Enquanto deixava a capela, me assustei com latidos vindos de uma fazenda ao longe. Pensei que os cães pudessem me alcançar, daí me apressei em sair dalí. Fiquei sem fôlego, e já de volta aos trilhos fui me abrigar num daqueles vagões abandonados. Tudo em vão. Só depois fui perceber que os cachorros não me pegaríam já que entre eu e a fazenda havia o Rio Paraíba do Sul.
Missão cumprida, agora era hora de partir. Já era 1 da tarde e eu precisava estar de volta a Andrade Pinto até as 4, senão perderia o ônibus de volta a Paraíba do Sul. A água havia acabado, o sol a pino deixava raros espaços de sombra pra descansar. Meu calçado se comportou bem, não me produziu bolhas, mas andar pela brita fazia com que meus pés ficassem cada vez mais doloridos e me forçava a diminuir o passo. A mesma brisa que soprava ar fresco em meu rosto, também bafejava a todo momento o mormaço que vinha dos trilhos, dificultando até a minha respiração. Debaixo daquele sol inclemente, o filtro solar não me livraria da insolação. Pra me proteger das queimaduras, usei uma camisa de mangas compridas e uma pequena toalha debaixo do boné. Depois tive de tirar a camisa e fazer sombra com ela enquanto caminhava. Sentia muita sede e sabia que uma desidratação naquelas condições seria fácil de acontecer. Mais adiante, encontrei um riacho por detrás de uma cerca de arame, com vegetação ao redor e próximo a um escoadouro de onde partíam ruidos de morcegos. Não bebi aquela água mas me banhei nela, o que me deu uma certa sobrevida. Dava pra sentir o calor nas minhas roupas.
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O diminuto fã ferroviário diante da imensidão da paisagem, numa das únicas fotos que consegui tirar na volta para Andrade Pinto. O calor não me dava ânimo pra muita coisa. Se essa foto pudesse transmitir a temperatura ambiente...
De volta aos trilhos, eu corria contra o relógio. Aliás, força de expressão. Não tinha forças para correr. A sede era cada vez maior e eu sabia que não iria aguentar muito tempo sem beber água. No caminho encontrei um córrego a beira da linha e pensei "antes hepatite do que morrer de sede". Bebi o quanto pude, me lavei novamente e enchi o cantil. Continuei a caminhada, mal conseguia erguer a cabeça, o olhar baixo só me permitia ver a monotonia dos dormentes e trilhos. Consegui encontrar um pouco de sombra debaixo de um daqueles vagões abandonados. Tirei as botas, a mochila, o colete, descansei um pouco afinal, mas de olho no relógio. Não podia me extender muito. Além disso, em qualquer lugar que eu parasse haviam formigas que subiam pelas roupas e moscas zumbindo insistentemente ao redor dos ouvidos.
Me recompus e voltei aos trilhos. As passadas eram cada vez mais difíceis, o sol me açoitava e o vento abafado era sufocante. As placas de quilometragem pareciam demorar a aparecer. Já não conseguia pensar direito, tentava a todo custo não desmaiar. Se eu caísse apagado por sobre a linha, seria certamente feito em pedaços pelo trem. Trovejava, nuvens carregadas se formavam ao longe, e isso me preocupava. Se, por um lado, a chuva poderia me trazer algum alívio, por outro, estaria corrrendo sério risco de ser atingido direta ou indiretamente por um raio, devido a grande incidência de descargas atmosféricas no sudeste brasileiro e o perigo de permanecer em descampados e vias férreas durante tempestades elétricas.
O que mais me animava era a possibilidade de beber um refrigerante assim que chegasse a Andrade Pinto. A minha referência era a Ponte da Secretaria por onde passei na ida e que não ficava muito longe da estação de Andrade Pinto. Depois de intermináveis curvas, eis que surge a ponte.
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A Ponte da Secretaria, em foto que tirei ainda pela manhã, na ida para Carlos de Niemeier.
Me senti um pouco aliviado, mas parecia que quanto mais perto eu chegava, mais as forças me escapavam. Com passos arrastados, atravessei a ponte que de tão quente mais parecia uma frigideira. Faltava pouco. Ter visto a estação ao longe foi a visão do paraíso. Os metros restantes foram percorridos com esforço sobre-humano. Um trem cargueiro se aproximava, e eu quase que cambaleando pela linha. O maquinista buzinou mas eu demorei um pouco a sair da via.
Finalmente pus os pés de novo em Andrade Pinto. nos fundos da estação encontrei uma mulher que chamava pelo filho. Implorei a ela água. Ela me trouxe uma garrafa geladinha. Devo ter tomado três ou quatro copos cheios. Depois joguei água pela cabeça para me refrescar. Depois disso, fui a uma birosca e tomei o refrigerante que tanto queria. Sentei no chão da rodoviária. Eu estava um trapo, sem forças para amassar uma folha de papel. O ônibus chegou pontualmente as 4 da tarde e partiu 10 minutos depois. Cheguei a pousada em Paraiba do Sul a tempo de comer alguns salgados, tomar banho, trocar de roupa e tirar um cochilo de 1 hora e meia. Só que acabei perdendo o último ônibus para o Rio de Janeiro, o que me obrigou a fazer 4 horas de baldeação (de Paraiba do Sul até Três Rios, de Três Rios até Posse, de Posse até Itaipava, de Itaipava até a rodoviária de Petrópolis e de lá até o Rio). Era meia-noite e meia quando entrei em minha casa, após uma caminhada de 22 km durante 8 horas, um verdadeiro teste de resistência física e mental.
Foi a aventura mais extenuante que já encarei em todos meus anos de fã ferroviário. E que venham as próximas!
:)
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
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2 comentários:
A gente podia ter ido de carro, né? Que doidera Latuff, vc podia ter morrido ô mané! Mas o texto ficou ótimo. Bis, luciane.
Nossa! Incrível o relato! As fotos também são muito boas...o conjunto nso faz imaginar, nos sentir por lá...admirando a história, os números que marcam as datas...!
Muito maneiro!
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